quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Os sonhos

Hoje no seminario de Tecnica Psicanalitica conversavamos sobre sonhos, sobre como leigos estao vendo a psicanalise, o uso do diva, enfim. E nisto a Silvia Brandao (coordenadora do seminario) nos mostrou um texto muito bem escrito por um leigo. Fiquei com vontade de publica-lo aqui para deixa-lo mais acessivel a quem interessar.

Duas noites atrás eu sonhei com a Gisele Bündchen. Não havia no sonho, juro, nada que não pudesse ser contado num almoço de família, mas, mesmo assim, ele me causou vergonha: por que um homem adulto sonharia com a modelo mais famosa do planeta? Não parece coisa de adolescente ou de leitor de revista de mulher pelada?

Como ontem era dia de análise, levei o assunto para a minha psicanalista. Ela ficou instantaneamente interessada. Quis saber detalhes, sensações e ideias que haviam me ocorrido ao despertar. Meu embaraço com a situação, que persistia desde que eu saí da cama, foi dando lugar à impressão de que, bolas, talvez houvesse algo ali além da revelação de que funciona no meu cérebro um canal clandestino do E! Entertainnment.

Ao final, falamos boa parte da sessão sobre o tal sonho. A conclusão foi que havia nele uma manifestação de contentamento comigo mesmo. Explico.

Para além da sua existência real, como pessoa, a gaúcha de Horizontina – que, aliás, fez 30 anos no último dia 20 de julho - tornou-se um símbolo de beleza, feminilidade e fortuna. Sonhar com ela, num contexto agradável, equivale a sonhar que você está dirigindo um carro conversível numa estrada da Provença: denota tranqüilidade, confiança e sugere que você não deixou de ambicionar coisas legais. Pelo que, entendi, é uma espécie de “Yes, you can” gritado lá do fundo do inconsciente.

Fiquei contente com essa interpretação. Ao contrário das pessoas que viraram as costas para Freud – ou que nunca souberam das suas teorias – eu acredito que os sonhos me contam coisas que eu não sabia sobre mim. Eles revelam ou explicitam estados de espírito. Eles trazem memórias submersas, pescadas pela rede das emoções recentes. Eles abrem portas para pedaços inconscientes da minha mente aos quais eu não teria acesso de outra forma. Sonhar é conversar comigo mesmo, algo que nem sempre é agradável, mas frequentemente é util.

Uma das coisas que eu não tenho feito, mas já fiz, com grande proveito, é tomar nota dos sonhos enquanto eles ainda estão frescos na memória. Depois de um tempo fazendo isso, a gente se acostuma a memorizar, anotar e refletir. Com auxílio do analista, ou mesmo sem ele, passamos a interpretar aquele material incoerente e desconexo. Aos poucos ele ganha sentido e nos põe em contato com sentimentos e sensações menos óbvios.

Ao incorporar o inconsciente, através do sonho ou da análise, a vida ganha outra dimensão existencial, que eu comparo ao mergulho submarino. Quem vai à praia e nunca mergulhou desconhece aquela vastidão submersa na qual um mundo inteiro coexiste em silêncio com o mundo da superfície. Fazer análise é como mergulhar no oceano interior: acrescenta uma nova e vasta dimensão à nossa realidade.

Nem todo mundo concorda com isso, claro.


Tive namoradas que me davam vontade de segurar pelo pulso e arrastar ao consultório mais próximo, tamanha e tão óbvia a necessidade que elas tinham de tratar suas dificuldades interiores. Tenho amigos e conhecidos a quem uma ou duas consultas semanais fariam muito bem, mas eles juram que não é o caso. E não se trata somente de dinheiro. As pessoas têm objeções intelectuais e resistências emocionais à análise. E muitos foram contaminados pela ciência meia boca que circula por aí decretando a morte da psicanálise – e a sua substituição pelo vácuo mais atroz e mais absoluto.

Se você está em depressão ou com síndrome de pânico, alguém vai lhe oferecer um remédio. É bom que o faça. Os remédios ajudam. Mas o que a ciência oferece antes ou depois disso? Quando você está “apenas” angustiado, infeliz ou perdido, o que a psiquiatria tem a dar? Uma pessoa que não acha graça na vida, no corpo ou no convívio com seus semelhantes faz o quê, toma pílulas? Eu acho que não.

Para quem não está doente, para os bilhões de neuróticos normais do planeta, a terapia pela palavra ainda é a forma mais eficaz (senão a única) de tratamento. Ou ao menos de autoconhecimento.

Se dependesse de mim, todo mundo ganharia na adolescência um voucher com direito a duas horas de análise semanal por 10 anos, passível de renovação. Acho que o mundo seria um lugar melhor. Nele, as pessoas poderiam acordar acabrunhadas com um sonho, levá-lo ao analista e descobrir, pelo processo de análise, que não havia ali motivo de vergonha, mas, sim, para celebração. Será que existe algo mais necessário do que livrarmo-nos das nossas vergonhas íntimas?

(Ivan Martins, Jornalista da revista EPOCA)